quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sapatinhos vermelhos



O desapego.
Não , não tenho problemas com o desapego.
Dou meus cabelos ao corte, sem economias.
Compro roupas baratas para desfazer-me delas sem culpa.
Não tenho ciúmes do meu amor, eu acho.
Empresto o carro, divido o amigo.
Aprendi a possuir sem exclusividade, a usufruir do que me cabe.
Sem dramas.
Mas, não é assim que me veem, desapegada.
Tudo começou com os sapatinhos vermelhos.
Era eu menina de seis anos, e , como em toda casa de boa administração e pouco dinheiro, sujeita a algumas regras, ainda válidas.
Minha mãe, por época das férias escolares, fazia uma bela limpeza nos armários a cata de papelada vencida, objetos quebrados e vestuário inservível.
A papelada era posta fora, sem reciclagem porque naquela época não tinha.
Os quebrados eram consertados pela habilidade caseira ou encaminhados para oficinas. Sim, ainda valia a pena, os objetos não eram descartáveis.
E o vestuário era selecionado e doado para outras famílias , não necessariamente mais pobres que nós, mas que pudessem fazer uso de uma peça em bom estado que já não servia mais para a turma da casa.
 Foi assim que os meus sapatinhos vermelhos de verniz foram oferecidos, sem cerimônias, à uma vizinha em visita, e que tinha uma sobrinha pouco mais nova do que eu.
Os sapatinhos nem mais serviam mesmo.
O verniz duro e grudento fazia bolhas no calcanhar quando da insistência em usá-los.
Mas eu os amava.
Seria a estória de Dorothy em Oz que me inspirava?
Não creio, eu não a conhecia, nem o Homem de Lata ou o cachorrinho Totó.
A tv precária e iniciante não exibia estas coisas.
O cinema era luxo e eu era pequena para isso.
Isso? Sim, ir ao cinema.
Não era comum para mim, como é para a criança de hoje.
Era mesmo a magia do verniz, seu brilho e o pressentido glamour do vermelho.
Concordei de pronto com a doação, mas dei um jeito de sair de cena levando os sapatinhos num disfarce.
Fui até o quarto e os calcei para uma despedida.
Não os queria mais, machucavam.
Era só uma  despedida.
Minha mãe, ao ver aquilo, a menina , uma mocinha já, tentando enfiar os pés grandões nso sapatos diminutos, como uma das irmãs desajeitadas da Cinderela,  ralhou comigo.
A vizinha murmurou um " deixa a menina" e saiu de mansinho, envergonhada.
Eu chorei muito, demais, rios em correnteza pelo mal entendido.
E os sapatinhos ficaram por lá, em abandono, nunca mais calçados, embaixo da cômoda, fora do alcance das vistas e das vassouras, acumulando o pó do semestre.
Na próxima limpeza eles seriam jogados no lixo, o verniz vencido, o couro craquelado, o pó grudado embaçando , sem remédio, qualquer possibilidade de brilho.
A vizinha, não me lembro mais de ter visto.
Minha mãe , pessoa de signo de boa memória, deve se lembrar de sua versão da história.
Eu guardo esta, na posição de vítima da ação contra a palavra, sem ressentimentos.
Os sapatinhos de verniz vermelho voltaram aos meus pés de adolescente, já estabilizados em tamanho, mas desmedidos em usos e gastos.
Hoje, meus sapatinhos de verniz são da clássica, modernosa e discreta cor nude.
Virei, enfim, uma mocinha!
Os vermelhos ainda compõe o figurino, sem brilho, utilitários, campeões em conforto e primeira escolha no uso.
Mantenho o hábito herdado, da arrumação de férias.
Faço as doações desejadas com as essenciais despedidas, desfiles , rodopios, poses no espelho.
Sem testemunhas.

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