sábado, 11 de setembro de 2010

Mia Couto em Ribeirão

Amigos, Mia Couto foi um presente, sua fala é naturalmente poética e caminha com bom humor por todo e qualquer assunto, mesmo os mais espinhosos. A noite foi ótima, e deixo-vos com a excelente reportagem que Mariza fez sobre o evento e que eu não poderia ter feito melhor. Beijos

Mia Couto

Escrito por Mariza Helena Ribeiro Facci Ruiz - Alumiar


Conheci Mia Couto através do livro “O último voo do flamingo”, recomendado em nossa reunião de literatura. Eu me encantei. Adorei a linguagem, as novas palavras, as estórias bem contadas, a referência à mitologia, o humor. Soube que o rapaz nasceu em Moçambique, na África, sim senhores.

Em um lugarejo chamado Beira onde brincava com crianças negras, aprendia a falar a língua do lugar e a escutar histórias. Li coisas sobre ele que me impressionaram. Entrevistas. Ele diz que sempre abre as portas para a oralidade, e não importa que isso deixe de ser literatura. Ele diz que o que é importante é interrogar o que é familiar. Diz que a identidade não existe, pois é uma procura infinita. No entanto, entrevistas não sãos as gentes, objetos das questões que lhe são impostas.

Então eu fiquei curiosa de conhecer pessoalmente o moçambicano. Assim, quando soube que viria a Ribeirão Preto, nem acreditei. Fiz inscrição para o evento e na quinta-feira, 26 de agosto estava eu, lá. Turma do gargarejo. À espera e à espreita. O homem corresponderia à obra?

Ele chega, 55 anos mal aparentados, olhos azuis perscrutadores e doces, muito doces, fala mansa e precisa. Responde às perguntas com muita naturalidade, sem arroubos, sem frases feitas. É mesmo um contador de estórias. Ele responde, contando estórias.

Conta que sua filha é do tipo que tem premonições. Ela, quando soube que ele deveria vir ao Brasil, lhe dizia todos os dias que ele não deveria vir. Que era muito perigoso, que havia assaltos, que ele poderia ser assassinado. Todo tipo de coisa ruim poderia acontecer-lhe. E, ele veio assim mesmo. Porém, os prognósticos da dileta filha ficaram-lhe guardados na cabeça. E, ao chegar no aeroporto, começou a ficar preocupado. De repente, viu um cara com um cartaz com seu nome. E começou a se perguntar se aquilo não era falso, se não estaria sendo sequestrado. Mesmo assim, foi. Entrou no táxi e continuou com seus pensamentos lúgubres. O homem do táxi muito gentil lhe ofereceu um recipiente de metal e lhe perguntou: “Aceita uma balinha”. Nada demais se balinha fosse um termo comum em Portugal. Mas Mia, contou que bala em Portugal e só de bala de revólver. Então ele pensou: Bem, vou morrer, mas pelas mãos de um bandido que pelo menos é muito doce.

Ele contou, também, que era um menino que não tinha lá muitos méritos com os pais. Era considerado meio retardado. Um dia, foi comprar pão na padaria e não voltava nunca mais. O pai foi atrás dele e o encontrou sentado, esperando. Na padaria haviam informado que não havia mais pão e que a próxima fornada sairia dali a duas horas. Ele ficou a esperar. Observava as pessoas e isto era bom. Ficar por ali não o incomodava. Fazia-o pensar e ter ideias.

Disse que tem medo das perguntas que as teses suscitam, pois não se lembra do que escreveu. É como se os personagens o tomassem. Os personagens não o deixam dormir. Diz que as pessoas querem ser estórias. Diz que não sabe de cor suas poesias.

E eu fico ali, a pensar. O cara escreveu magníficos livros, de engajamento com seu país e sua cultura, com linguagem única, que introduz novos conceitos. O cara tem frases incríveis e bem humoradas como: “Reencornado é um homem que foi traído duas vezes pela mesma mulher.” Tem uma linguagem poética: “A alma é um vento. Pode cobrir mar e terra. Mas não é da terra nem do mar. A alma é um vento. E nós somos um agitar de folha, nos braços da ventania.”

E diz que não sabe? E não diz o que sabe? Que maravilha!

Eu quero é dar testemunho do que vi. Eu vi um grande homem, que é um grande escritor, sem empáfia, nem sopros de vaidade. Alguém que escuta as pessoas, que vê as pessoas. Melhor: vê nas pessoas a pluralidade, os muitos mundos que as habitam, a grandiosidade de ser. Ele é um contador de estórias, pois não é a estória a guardiã da memória? E reconstruir um país não passa por honrar o velho, unir passado e presente, fusão alquímica, união dos opostos? Mia Couto parece-me é laçado pelas pessoas com suas estórias disponíveis desde sempre. E é nelas, nas pessoas que tudo está. No inconsciente pessoal que se mistura ao coletivo e narra um pouco de tudo. É ouvir, é ser viajante. É deixar-se laçar pelo universal. Pela poesia e pelo amor que segundo ele: “estão acima de qualquer discurso”.

Para terminar, pouco me importa se o homem corresponde à obra, embora saiba que está além da obra. Não foi minha cabeça que se envolveu com ele. Foi minha emoção que liberou minh’alma, que se desprendeu de alfinetes qual borboleta escravizada e voou livre, com todas as estórias que já contaram sobre mim e sobre os que me antecederam.



Educadora, Terapeuta Floral e DOULA

Practitioner pela Bach Foundation

Um comentário:

  1. Eliane, lindo o trabalho que você tem feito em Ribeirão e aqui nesse blog, que está uma delícia. Fico morrendo de vontade de participar dos eventos abertos ao público. Parabéns por tudo, linda! Um grande abraço. Sim, visite o meu espaço, pois meu último texto ficou diferente. Quero sua opinião sobre O Rei Dos Picaretas. [sorrio]

    *Entre o sonho e a realidade eu prefiro a realidade que me permita sonhar (Jefhcardoso) http://jefhcardoso.blogspot.com

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