Um dia um homem morre e de ilustre desconhecido, quase anônimo, passa a ter a vida estudada em minúcias. E cada pedaço de papel, lenço de pano, pegadas nas praças, mãos nos corrimãos das casas, é visto como vestígio, indício de passagem ou comportamento.
Da verdade, nem ele soube.
Deixo com vocês o texto que recebi da Mariângela do clube de leitura, sobre um novo livro sobre Pessoa.
Vou dividí-lo em partes para não os cansar.
Ao final do texto há uma pérola de conselhos pessoanos.
Mari, obrigada.
Fernando Pessoa ocultou a identidade em seus versos. Uma nova biografia revela as dúvidas e a sexualidade do poeta português
Norma Curi
DIA A DIA
Fernando Pessoa passeando em Lisboa nos anos 30. A biografia busca motivos cotidianos para a obra do escritor
Criador de identidades imaginárias e de duplos, o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) deixou aos leitores uma obra repleta de armadilhas e pistas falsas sobre sua verdadeira personalidade. A maioria dos estudiosos contenta-se em submergir no mundo de fantasmas inventado pelo autor e decifrar os fascinantes segredos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e outros de seus 127 heterônimos. O advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti, de 62 anos, preferiu a realidade. Há sete anos, persegue rastros de Pessoa correndo atrás das 31 moradas, 30 escritórios e inúmeras tabacarias frequentadas pelo escritor. Não perdeu um leilão em que uma carta de Pessoa estivesse à venda. Percorreu alfarrabistas em busca de edições raras e livros sobre sua obsessão. “Só num deles comprei de uma vez € 10 mil em livros”, diz. Por outros € 10 mil, levou a coleção de selos do poeta. Montou em casa um minimuseu dedicado a Pessoa, alterou a rotina acordando às 3 horas da manhã para escrever até as 7 e contratou peritos para analisar minúcias da vida do poeta, como o grau de seus óculos, e a causa de sua morte (pancreatite, segundo Cavalcanti, e não cirrose). Ao final de sua empreitada, decidiu compartilhar os resultados de sua pesquisa com o público. Os objetos colecionados estão na exposição de Pessoa no Centro Cultural Correios do Rio de Janeiro, que começa nesta semana. Na abertura, na quinta-feira 24, Cavalcanti lança a mais completa biografia do poeta, Fernando Pessoa, uma quase autobiografia (Record, 750 páginas, R$ 79,90).
Na exposição, os nomes de José Paulo Cavalcanti e sua mulher, Lecticia, aparecem em letras miúdas ao lado de artigos como um bico de pena de Pessoa feito pelo amigo Almada Negreiros no dia do enterro do poeta, uma serigrafia tecida pelo artista Julio Pomar e a primeira e única edição em português publicada em vida (Mensagem, de 1934). Há também o poema “Antinous”, sobre a relação sexual do escravo homônimo com o imperador Adriano, publicado em inglês em 1918 à custa do autor, além de todas as revistas em que o poeta colaborou, dos manifestos que escreveu e do último livro que levava no bolso do pijama para o hospital São Luís dos Franceses, onde morreu em 30 de novembro de 1935 – Sonetos escolhidos, de Bocage.
Assim como Pessoa, Cavalcanti tem uma personalidade multifacetada. Especializado em Direito da Comunicação, é um dos maiores juristas pernambucanos. Estudou na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, publicou 18 livros jurídicos, foi ministro da Justiça do governo Sarney, é membro da Academia Pernambucana de Letras, leitor inveterado, pintor nas horas vagas e músico com vários discos gravados, entre eles um duo com o famoso pianista Arthur Moreira Lima. “Ele toca piano com a mão direita, eu, com a esquerda”, diz Cavalcanti. Em meio a sua rotina cheia de atividades, escreveu parte do livro de frente para o mar, gastando por semana uma caneta Pilot V7 comprada em Lisboa, no verso de cópias dos processos de seu escritório. O resto, completou na copa da casa de Piedade, no Recife, onde a papelada multiplicava-se pela pia, pelo fogão e pela geladeira, enquanto obras de Bach no fone de ouvido o mantinham a salvo das interrupções.
Segundo seu biógrafo, Pessoa escondia sua homossexualidade e tinha vergonha do próprio corpo
Cavalcanti não se intimidou quando, ao começar suas pesquisas, deparou com uma lista de 5.500 livros sobre Pessoa. Diz ter lido 1.000 e saído a campo para encontrar a tabacaria Havaneza da Rua dos Retrozeiros, que inspirou o famoso poema “Tabacaria”. Ali o poeta comprava cigarros Provisórios, Definitivos ou os preferidos Bons. Quando o amigo Mário Sá-Carneiro (1890-1916) vinha a Lisboa, experimentava a Mônaco e as Tabacarias Costa e Inglesa. Frequentador de botecos, nunca voltava para casa sem bater ponto nesses estabelecimentos, pedindo “dois , oito e seis” – um código que Cavalcanti decifrou: “Dois tostões para a caixa de fósforos, oito para o maço de cigarros Bons e seis para o cálice de Macieira”. Em jejum no balcão, fazia em gestos o número sete – “sete tostões, um copo de vinho”. Na hora do almoço, um bife. À noite, tomava sopa no restaurante Martinho da Arcada. O proprietário, Mourão, costumava enfiar um ovo no prato à revelia do cliente, que achava muito frágil. Lá, Pessoa escreveu a maior parte dos poemas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário