Divido simbolicamente o prêmio com minha mãe que trouxe o dito envelope que inspirou este trabalho.
O Passado
O passado bateu à porta.
Vestia um envelope pardo.
Sóbrio, magro, mas composto.
Seu traje, que poderia sugerir tristeza no trato, era apenas a indiferença disfarçando o conteúdo.
Veio pelas mãos de uma parenta, assim distante, portadora de um outro tempo.
Veio do espólio de alguma tia, de quem lembro a face farta de rugas e um sorriso, fingindo em amarelo, alguma alegria.
O nome? Fugiu pulando, pueril, as janelas da memória.
Sorri e agradeci a lembrança, possível fruto de uma arrumação tardia de armários , ou um resgate súbito da pilha de “lixo”.
Coloquei-o ali, displicentemente, no aparador.
Passei um café ruim, que é o meu jeito de passar café.
O aroma abraçou a cena .
A parenta se foi, missão cumprida, arrastando ao sol seus queixumes do tempo, do vento, do reumatismo, da vista, da vida.
O envelope rodou a semana inteira pelo mobiliário da sala experimentando poeiras , sujeito às variações da luz ambiente.
Rodou, rodou mas não se perdeu.
Ao contrário, achou o caminho devido.
Foi dar com os costados na mesa do meu ofício, encimando o monte dos papéis a serem vistos.
E assim se fez.
Rasguei-lhe o traje, fí-lo nascer.
De dentro do impessoal pardo, escorregou timidamente, um envelope branco envelhecido.
Era um convite de casamento, tradicional, o nome dos pais orgulhosamente grafados no alto, os dos nubentes, filhos, centrados, um de cada lado.
O convite tinha mais de 25 anos, e mesmo cheirando a guardado emanava de si o frescor do sonho sonhado pelos recém-casados, o burburinho da festa farfalhando tafetás, o cansaço dos saltos, das bocas , dos cílios, um branco de vestido, perfume de rosas na noite quente, uma lua e um buquê de margaridas.
Lembrança de quando ainda se casava e se acreditava no “Felizes Para Sempre”, de quando as moças eram princesas e os moços heróis.
Solidária, enxuguei a testa do noivo que tremia emoções .
Busquei novamente o envelope .
Quase aos saltos, saiu um cartão postal com dizeres no verso, sem data, endereçado aos avós de uma neta ainda menina que entrara na faculdade:
“ Esta é minha escola. Não é linda?!”.
Como pode uma letra revelar a juventude, com mais fidelidade do que uma foto.
A letra era de alguém que ainda não era.
Uma letra desenhada e caprichada, para ser entendida e apreciada.
Uma assinatura, da coleção de tentativas de assinatura, que buscava uma identidade única na multidão.
O texto de um entusiasmo verdadeiro e pleno, como é próprio da idade.
O sonho de futuro, as novidades, o cheiro da terra molhada de chuva no fim de tarde, a roupa molhada, a poeira dos livros da biblioteca desenhada numa réstia invasora de sol, o sono de quem não poupa viver, a certeza das amizades, a vontade de aprender e fazer e fazer e fazer a diferença.
Reconheci a neta menina, mandei-lhe um beijo.
Sacudi o envelope de monótono exterior, e fascinante colorido interior.
Dele, devem ter saltado minúsculas e invisíveis partículas de passado, que o meu olhar não identificou, mas minha alma sentiu e aqueceu-se toda nas lembranças.
Arrepiou-se ao contato do primeiro homem, doeu-se quando ele se foi, doeu-se novamente quando outros se foram, enroscou-se na ternura dos cabelos dos filhos, chorou agonias, protestou incertezas, aninhou-se em colos amigos, colheu júbilos, brilhou na luz própria.
Preciso lembrar-me do nome da tia que guardou por tanto tempo, num fundo de gaveta qualquer, este verdadeiro tesouro em forma de pedaços de papel aparentemente sem valor.
Ser-lhe grata pelo valioso presente.
Mandar flores, quem sabe, e quem sabe para onde.
A parenta portadora sumiu no poente.
O tempo apagou os rastros.
Agora, sou eu e as minhas lembranças.
Seria uma oração boa paga?
Sim, talvez a melhor!
Bendita seja, a tia.
Eliane Ratier
Que lindo, Eliane!! Uma pérola. Prêmio mais que merecido! Vai em frente amiga, que por aí vem mais. Beijos
ResponderExcluirParabens pela premiação! Viajei pelas lembranças, em sonhos perdidos no tempo, esquecidos em alguma gaveta,onde os olhos não podem ver e nem o coração sentir!
ResponderExcluirSUCESSO!!
BJOS
heloisa crosio